sexta-feira, 3 de abril de 2015

PORTAS

http://www.pagina20.net/artigos/portas/ Milton Chamarelli Filho * Não sei se por um número de portas se pode deduzir o caráter de quem projetou um item arquitetônico. Mas um pensamento óbvio me chega e, mesmo sendo inequívoco, não me furto a anunciá-lo: quanto maior o número de portas, menor é a liberdade que se tem. Creio que presídios e bancos sejam os exemplos mais fáceis que me veem à mente sobre o “poder” que as portas exercem nesses tipos de construção. A atenção, em verdade, não é sobre elas, mas o que por meio delas se pode assentir ou coibir. Se me permitem, acredito que podemos fazer uma pequena “sociologia da porta”, na medida em que elas fazem parte das nossas ações, do nosso mundo real e imaginário. Portas recortam espaços, delimitam geografias do ser e do viver. Um bater forte de porta pode ser um sinal de ira; um bater suave, de discrição, de uma saída imprevista, de soslaio. Uma porta pode guardar um segredo ou desvendá-lo; poder enclausurar ou libertar. Pode-se estar às portas do céu, que é única e “estreita”, ou do inferno. Uma porta separa o que pode e o que não pode ser visto, alcançado, tido; ela separa o espaço da nossa intimidade, da casa à rua e desta a casa. Uma porta é uma fronteira moral que delimita um modo de ser ou de não ser; encerra toda uma moral burguesa daquilo que por ela se permite, se omite, se cala. Nesse sentido, uma porta não é só algo físico, proporcional à construção da qual faz parte; é, sobretudo, um meio que pode ligar os universos, dito verdadeiros ou imaginários, reais ou fictícios. Mas ela é sempre a fronteira, a área limítrofe, mas incessante partida (dentro e fora) transbordante. Uma porta pode guardar segredos secretos (palavras da mesma etimologia), mas pode ser um lugar por onde tudo que é recôndito se faz revelar e tudo que é revelado se faz esconder. Ao que se abre, a porta deixa passar tudo que em última instância já foi um dia igual, semelhante. Uma porta é uma permissão; é um coexistir, um coabitar, um coração. Um coração que também tem portas e deixar fluir um mesmo sangue ou talvez fosse melhor dizer um sangue de um Mesmo. Um mesmo sangue que pode estar ali, lá, veia, artéria, balizados pelo coração; porta basal do que posso sentir, daquele que invade sem pedir, porque fora uno, primeiro, pela porta do olhar, talvez a única e indevassável, composta pela substância indestrutível e ao mesmo tempo fugaz: o momento. Portas são sempre vulneráveis porque foram construídas pelos sentimentos inauditos que as refugou, que as fez portas, limite da discriminação e de tudo aquilo que nos faz sentir outro, além da porta, da soleira, dos umbrais, do sentimento. Me afasto da porta e vejo o quanto ela faz parte da casa, da construção. A certa altura, ela é a própria casa, cindida de “portas fechadas” (um pleonasmo ou uma ironia?!); ela não respira; bolorenta, porta e casa se tornam ruínas uma da outra, degradação do momento, entropia. Quando um prédio morre, a primeira a ser lançada abaixo é a porta. Ela é o primeiro órgão a ser atingido, mutilado. Quantas memórias ela guardou ou quantas memórias foram lançadas esgarçadas. Que pensamentos se transpôs para depois da porta, desejo de liberdade, e quantos, também, já viram nela um abrigo? Um abrigo sem portas, porque ela sempre será o lugar de passagem, de trânsito, de vertigem entre dois mundos que podem ser tão diferentes quantos iguais: antes depois da porta. * Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC SP e professor do Curso de Jornalismo da UFAC